quarta-feira, junho 22, 2005

ABDIAS: UMA VIDA PELO POVO NEGRO!



Antes do meu aniversário, dia 15 de março, sempre me recordo que um dia antes, dia 14, nasceu em 1914 o mais persistente militante negro brasileiro: Abdias do Nascimento. Esse ano ele completou 91 anos, dos quais 74 anos foram dedicados ao fortalecimento da Consciência Negra. O incrível é que ele veio ao mundo antes de Malcolm X, 1925 e Martin Luther King em 1929, sobrevivendo até hoje na luta contra o racismo. Foi deputado federal e senador da republica, mas isso ainda é pouco da definir o que foi sua historia.
A vida de Abdias começou em Franca, interior de São Paulo, filho de um sapateiro e de uma dona de casa. Cidade com empregos na indústria calçadista, mas no inicio do século 20, as oportunidades estavam também restritas a cultura do café. Para Abdias havia dois caminhos nessa realidade: seguir o destino do pai e tornar-se sapateiro ou trabalhar na colheita do café. Nesta fase da vida ele credita a sua mãe, ter lhe plantado a semente da luta pelos direitos ao orientá-lo a reagir às ofensas racistas no ambiente escolar.
Com 17 anos, o jovem Abdias vê como única forma de ascensão social o alistamento militar e entra no Exercito. E vai para São Paulo, capital do estado, onde toma contato com a efervescência intelectual da época e o já existente movimento negro. Participa da fundação da Frente Negra Brasileira.
A Frente Negra é uma organização não governamental que se iniciou com idéias assistencialistas, mas que no decorrer de sua existência tornou-se uma entidade de combate ao racismo. Chega em 1935 a lançar um partido político de predominância afro brasileira, mas sofre um golpe, quando em 1937, Getulio Vargas, numa canetada extinguiu a legenda. Há quem diga que o crescente prestígio junto à comunidade negra teria assustado a elite, que incentivou Vargas a tomar a atitude.
Mas não é a primeira vez que as idéias de Abdias enfrentariam Vargas. Em 1932, ele se alia ao lado paulista na “Revolução” Constitucionalista. Também é nessa época que Nascimento protesta junto aos comerciantes paulistas sob o tratamento dado aos negros, tanto na ausência de funcionários afro-descendentes e no atendimento prestado. Já começa a ser visto como radical, tanto por brancos, quanto pelos negros conformados com a situação.
Em 1937 as denuncias de discriminação racial levam Abdias para cadeia, condenado com base na Lei de Segurança Nacional. É encarcerado na Penitenciária Frei Caneca. Solto no ano seguinte, Abdias é chamado a Campinas onde forma um núcleo de combate ao racismo que tinha como objetivo discutir e debater formar de eliminação das desigualdades raciais. Pioneiro para época. Também é em 38, que consegue finalmente se graduar em Economia no Rio de Janeiro.
Com 26 anos, Abdias é chamado a excursionar integrando a Santa Hermandad Orquídea, composto de artistas brasileiros e argentinos. No Peru, em Lima, assiste uma peça de teatro que iria mudar o modo de pensar a arte e o povo negro: Imperador Jones – peça de Eugene O Neill, que apesar do personagem negro é representada no palco pelo ator branco Hugo D`Evieri, que maquia o rosto, num típico black face.
Assistindo a peça e prestando principalmente atenção no ator, Abdias percebe que além dos teatros de bonecos, nunca tinha tido contato com essa arte. E pior, não se lembrava de atores ou atrizes negras interpretando, exceto as pessoas que exerciam dentro dos estabelecimentos artísticos as funções de serviçais, camareiros ou costureiras.
Abdias passa a morar na Argentina, mas começa a formular o projeto do Teatro Negro Experimental a ser implantado quando retornar ao Brasil. Em 1941 pisa em solo nacional, mas é surpreendida com uma ordem de prisão com base num processo julgado a sua revelia. Era uma acusação de 1936, de ter respondido a agressões racistas.
Dentro da Penitenciaria do Carandiru por quase dois anos, Abdias logo se socializa com os outros detentos e juntos formulam o Teatro do Sentenciado, escrito, dirigido e interpretado pelos presos. Ele conclui que o tempo ocioso das penas poderia ser aproveitado na arte. Proposta só adotada pelos governos só nos dias de hoje, mas ainda em pouco uso.
Finalmente em 1943, Abdias consegue sair da prisão e imediatamente retorna seus esforços para criar o Teatro Experimental Negro, mas recebe uma fria acolhida dos intelectuais e artistas paulistas. Mario de Andrade até se interessa, mas acha a proposta muito avançada. Diziam a ele “se coloca o negro no teatro, seria apedrejado”. Mas ele não desiste e muda-se para o Rio de Janeiro em busca de aliados para a proposta.
No Rio, Abdias começa seu projeto, entretanto encontra um obstáculo inesperado: há poucos negros com formação para o teatro. Em conjunto com a UNE - União Nacional dos Estudantes parte para alfabetização de alunos, não só ensinado a escrever, mas dando uma consciência critica artística e negra.
Finalmente com 31 anos, em 1945, Abdias consegue enfim estrear uma peça teatral na concepção do TEN. No dia 8 de maio, a peça é Imperador Jones, vivido no palco como deveria, por um ator negro – Agnaldo Camargo. A repercussão foi espetacular, sendo a novidade da arte naquele ano.
Nesta mesma época a atuação dele, não se resume apenas ao TEN, formando junto com outros negros brasileiros o Comitê Democrático Afro Brasileiro, na luta pela anistia para os presos políticos do período Vargas. Também é neste ano que em conjunto com outros intelectuais realiza com duas plenárias lotadas – São Paulo e Rio de Janeiro – na primeira Convenção Nacional do Negro.
A Convenção não é realizada por acaso. É véspera da Assembléia Constituinte e o grupo que Abdias participa já consegue entender que somente com alteração da legislação poderiam fazer o combate ao racismo. O documento final da reunião é hoje um embrião das ações afirmativas brasileiras, pois pede apoio a estudantes negros, a empresários afro-brasileiros com isenção de impostos e reivindica que o racismo fosse considerado crime federal. A visão dos participantes é pioneira, pois pede que a Constituição Federal reconheça a formação étnica brasileira, constando à contribuição de todos os povos, não só os brancos.
A proposta de transformar em lei federal a punição aos racistas é encampada pelo senador Hamilton Nogueira não é aprovada na Constituinte. Anos depois Afonso Arinos consegue o meio termo: transforma em infração penal as praticas de discriminação racial.
Esse episódio leva Abdias a entender que é necessário participar da política e em 1946, aceita o convite para fundar o PTB – Partido Trabalhista Brasileiro. Dois anos depois cria uma seção do partido contra discriminação em conjunto com outros filiados, entre eles Sebastião Rodrigues Alves.
Esse tipo de organização existe hoje em alguns partidos como no PT – a Secretaria de Combate ao Racismo e está sendo organizada no PSDB sob o nome de Tucanafro. Mas na década de 40, os partidos políticos não discutia e nem reconheciam como problema serio o racismo. Dentro do PCB de Luis Carlos Prestes, os militantes negros eram apelidados de integrantes de TEN, como descreve os professores Flavio Gomes e Elisabeth Viana, no livro De Preto a Afro-Descendente.
Com 35 anos, aliado com Guerreiro Ramos e Edson Carneiro, respectivamente sociólogo e antropólogo, realiza a Primeira Conferencia do Negro Brasileiro. Funda também o Quilombo, órgão de divulgação do TEN. O jornal circula por dois anos e o conjunto desta obra pode ser adquirido em livrarias sendo uma ótima fonte de pesquisa sobre o pensamento negro da primeira metade do século 20.
1950, finalmente o TEN consegue organizar o Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, na cidade do Rio de Janeiro. O evento reuniu militantes, intelectuais e cientistas motivados no esforço da Unesco que tinha como meta no período, o monitoramento das relações raciais. Funda-se no calor dos acontecimentos o Instituto Nacional do Negro com a proposta de pesquisar a situação da população afro brasileira.
Um Concurso de Artes Plásticas cria um conflito entre Abdias com a Igreja Católica. É 1955, e o objetivo é retratar um Cristo Negro – em oposição à imagem européia de Jesus mostradas nas imagens sacras. Só consegue ser compreendido pelo progressista bispo Dom Helder Câmara. Dois anos depois com turnê no Rio de Janeiro e São Paulo o TEN encena a peça de sua autoria: Sortilégio: Mistério Negro.
È bom registrar que antes disso, o TEN encenaria as peças “Todos os Filhos de Deus tem Asas”, “Filho Pródigo” de Lucio Cardoso e “Aruanda!” de Joaquim Ribeiro. Nesses anos lança uma atriz que faria historia no teatro, cinema e televisão - Ruth de Souza.
O TEN consegue além de debater a situação do negro, leva o teatro brasileiro a fazer uma revisão de suas bases conceituais e estéticas. Não só através de apresentações, mas também com seminários e encontros o TEN ajuda nessa transformação. Abdias analisa que “o Teatro Negro Experimental é um processo”, “A Negritude é um Processo”.
Em 1964 acontece o golpe militar, deixando Abdias com 50 anos, já preocupado, tinha sofrido perseguição política durante a ditadura Vargas e já previa o mesmo a partir daquele ano. Mas segue militando e em 68 lança o Museu de Arte Negra com exposição inaugural no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Mas visado pela repressão, deixa o país em direção aos Estados Unidos onde a Fundação Fairfield o convida a realizar uma serie de palestras em solo americano.
Em 1969, o exilado Abdias atua como conferencista na Universidade de Yale e inicia como artista plástico exposição de telas sobre a cultura negra do Brasil e sobre a luta dos povos africanos pela independência. Nos Estados Unidos é ainda convidado pela Universidade de Wesleyan em Middletown, Connecticut onde participa do Centro para Humanidades, convivendo com os intelectuais como Norman Mailer, Normam Brown, John Cage, Buckminster Fuller, Leslie Fielder.
No ano do Tri-Campeonato da seleção brasileira de futebol, na Universidade de Nova Iorque, Abdias começa a exerce a função de professor de Culturas Africanas até 1981. Em 73 participa da Conferencia de Planejamento do Sexto Congresso Pan Africano, em Kingston, na Jamaica - terra de Marcus Garvey. O Congresso acontece no ano seguinte na Tanzânia e ele é o único representante da América Latina.
Durante um ano aproximadamente como professor visitante Abdias deu aulas no Departamento de Línguas e Literaturas Africanas na Universidade de Ifé, na Nigéria.
Após anos de exílio, Abdias volta a se ligar ao Brasil na participação do grupo liderado pelo ex-governador Leonel Brizola na tentativa de refundar o extinto PTB. Mas eles são surpreendidos por Ivete Vargas, que toma a legenda, os forçando a fundar o PDT - Partido Democrático Trabalhista. Ele só aceita participar da iniciativa ao convencer Brizola a adotar uma linha dentro do partido de combate ao racismo.
No Brasil, já em 1978, Abdias participa da histórica fundação do Movimento Negro Unificado em São Paulo, entidade que ajuda inclusive a criar núcleos pelo país, usando seu prestigio. E ele é grande, tanto é que em 1979, um bloco de congressistas norte-americanos o convida a palestrar em Washington. No ano seguinte lança o livro O Quilombismo que traz sua visão de estratégia e pensamento sobre o movimento negro no Brasil e no mundo, obra importante, mas pouco divulgada. Participa da organização do Memorial Zumbi, na Serra da Barriga, Alagoas, que luta pelo resgate arqueológico do Quilombo dos Palmares.
Em 1981 Abdias funda o Instituto de Pesquisas e estudos Afro-Brasileiros – o IPEAFRO, nas dependências da Pontifícia Universidade Católica em São Paulo. Dentro do PDT, a exemplo do que tinha feito no PTB 33 anos antes, funda a Secretaria do Movimento Negro da legenda.
Finalmente em 1983, assume como deputado federal do PDT, pelo estado do Rio de Janeiro, no Congresso Nacional. Não é o primeiro afro-descendente, mas destaca-se pela defesa intransigente das reparações aos negros pela Escravidão, travando fortes debates com deputados e senadores. É novamente visto como radical, tanto por políticos e mídia. Seu mandato terminou em 1986.
Ainda neste ano a vida de Abdias é agitadíssima. Participa do Simpósio de apoio à luta do povo da Namíbia pela independência, visita a Nicarágua onde conhece a comunidade negra local. Novamente a convite de parlamentares negros, discurso no Congresso Norte Americano. Fato que repete em 85, devido à repercussão. E assim segue por anos, com vários convites a palestras nos Estados Unidos, África e Europa.
No ano do Centenário da Abolição, em 1988, Abdias é uma das vozes discordante do tom comemorativo do Governo Federal, unindo-se as lideranças negras. Participa nos anos seguintes como presidente do Memorial Zumbi da Fundação Palmares e é convidado de honra na cerimônia de independência da Namíbia.
Durante o Governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, funda em 1991, o primeiro órgão de estado direcionado aos problemas da população negra – é a Secretaria de Estado da Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras, onde trabalha até 94. Participa da 48ª Conferencia do Congresso Nacional Africano – CNA, presidida pelo recém liberto líder Nelson Mandela, realizado em Durban.
Com a doença de Darci Ribeiro, assume em 1991, a cadeira de senador da republica onde fica até 1992. Retorna ao cargo definitivamente em 97 com a morte do titular onde permanece até o fim do mandato em 1999. Sobre sua participação na política Abdias diz que sempre teve votos de negros e brancos progressistas que entenderam a importância de sua luta.
Exerceu ainda o cargo de Secretario de Estado dos Direitos Humanos e Cidadania em 1999 e em 2000 coordenou o Conselho dos Direitos Humanos.
Abdias apesar das dificuldades físicas geradas pela idade, ainda exerce forte influência no Movimento Negro, sendo convidado na cerimônia de criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, no Governo Federal, criada por Lula e chefiada pela ministra de estado Matilde Ribeiro. Houve uma campanha para indicá-lo ao Premio Nobel da Paz por seu trabalho internacional pela causa negra. Foi em 2004, coordenada pelo advogado e militante negro Humberto Adami.
Ele ainda diz “sou intransigente quando o assunto é racismo”. Os textos e propostas do TEN ainda são considerados avançados hoje, mas são pouco estudados pela classe artística. Suas ideais impressas no quilombismo, involuntariamente são as bases do pensamento do contemporâneo movimento negro, apesar de não usar os termos atuais como ações afirmativas, discriminação positiva. Também é necessária uma releitura para se entender que ninguém está inventando a “roda” no movimento negro.
Considerado um grande intelectual internacionalmente e quase desconhecido em sua terra natal, Abdias é o registro vivo da luta do negro no mundo no século 20. Não teve a notoriedade de Malcolm X ou Martin Luther King, pois nunca teve uma grande organização nacional de apoio como eles tiveram. Além disso, fazer o combate ao racismo num país como os Estados Unidos que não teve nenhuma interrupção democrática e fazer no Brasil onde enfrentou duas ditaduras: é uma diferença brutal.
Outro diferencial entre Martin Luther King, Malcolm X e Abdias é que os lideres norte-americanos tiveram um espaço nos meios de comunicação, sempre negado ao militante brasileiro. Lá o debate foi e é cotidiano e no aqui, apenas acontece nos dias 13 de maio e 20 de novembro. E religiosamente o Movimento dos Mulçumanos Negros e os Pastores Negros, não têm similar no Brasil, onde as igrejas e cultos em sua grande maioria são conservadores na questão do negro e o discurso defendido é da democracia racial.
Entretanto ele era visto pelas autoridades brasileiras como radical e tão perigoso quanto Malcolm e Luther King e só não morreu assassinado também, por sair do país, pois correu o risco de ser torturado e morto, como elemento subversivo. Na era Vargas chegou a ser preso por sua luta negra.

Talvez sua longevidade seja fruto da esperança de assistir os frutos de sua militância se concretizar. Abdias Nascimento com sua barba branca e sua elegante bengala traduz a imagem de Moises que lidera a libertação do povo hebreu do Egito, mas conscientemente não quer ter o mesmo fim de historia: quer assistir os negros numa era de superação do racismo.Autor: Marco Antonio dos Santos, membro do Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de SP

Nenhum comentário: