Desde as chamadas novela "A Favorita" ensaio para escrever sobre mais esta polêmica da Rede Globo: o vilão negro interpretado pelo ator Milton Gonçalves. Faz tempo que a venus platinada trocou os bons roteiros por truques baratos para obter audiência. Estamos diante de outro caso.
Porém, ao ler a entrevista do experiente Milton Gonçalves, para a Folha de São Paulo, começo a pensar a imaginar o que teria acontecido com a postura daquele artista que se negava a fazer papéis que aumentasse o preconceito contra o povo afro-brasileiro? Aquele que deu entrevista no documentário A Negação do Brasil, do Joel Zito Araujo.
A fala do ator contra cotas demonstra uma falta de familiaridade com o tema.
Por estas e por outras que apostos as minhas fichas na periferia. Lá não tem divagação. Preto sabe o que é a discriminação, sem teoria e não fica filosofando sobre a solução: é a favor de ações afirmativas.
Um deputado negro com certeza não é impossivel. Mas quantos políticos negros estiverem envolvidos nos últimos escândalos? Já sabem a resposta.
Uma resposta a Milton: antes de existir um Barack Obama foram criadas condições de auto-estima e orgulho negro por atores afro-americanos que se recusaram a fazer só papel de bandidos.
Leiam a entrevista e tirem suas conclusões.
Quando foram divulgadas as primeiras notícias de que Milton Gonçalves seria um político corrupto na novela "A Favorita", da Globo, a bomba logo estourou em seu e-mail. O personagem, escreveram os remetentes, poderia prejudicar candidatos negros nas eleições. "Será que o objetivo era atingir Barack Obama?", surtou um.Ninguém melhor do que Milton para entrar nessa polêmica. Aos 74 anos, 43 só de Globo, o ator passou a vida na luta por papéis que iam além dos escravos e empregados reservados a negros. Quase foi demitido quando se opôs à decisão de pintar Sérgio Cardoso de preto para interpretar o escravo protagonista de "A Cabana do Pai Tomás" (1969/70). Além disso, Milton é político na vida real.Filiado ao PMDB, foi candidato a deputado nos anos 80 e a governador do Rio nos 90. Romildo Rosa, seu papel em "A Favorita", não só é corrupto como chefe de uma família desequilibrada. A controvérsia sobre a abordagem politicamente incorreta do núcleo negro deve crescer, uma vez que a trama de João Emanuel Carneiro, há três semanas no ar com 35 pontos de média, deu sinal de subida no Ibope e bateu 40 na segunda-feira. À Folha o ator falou da celeuma, fez críticas às TVs por terem poucos negros, às cotas, a Lula e a políticos em geral. Leia abaixo.
FOLHA - O sr. tem a carreira marcada por conseguir papéis que vão além dos normalmente concedidos a negros, como escravos e empregados. Chegou a pedir a Janete Clair um personagem "engravatado" e acabou fazendo o médico Percival em "Pecado Capital" (1975/76). MILTON GONÇALVES - Sempre lutei por papéis relevantes. Há muitos anos, na peça "A Mandrágora" [de Maquiavel], comecei fazendo um escravo e acabei no papel que era do [Gianfrancesco] Guarnieri. Tinha que fazer um esforço para me convencer de que era capaz. Queria papéis que acrescentassem algo a um processo antes inconsciente e hoje muito consciente: o da inserção sem humilhação.
FOLHA - Nesse contexto, como avalia o fato de interpretar na novela das oito um político corrupto? Os papéis não precisam mais levantar a bandeira do movimento negro?
MILTON - Como ator, quero fazer todos os personagens. Fazer um vilão provoca mais discussões do que papéis usuais. E a política brasileira... Aqui no Rio, aqueles três jovens negros, e é bom grifar isso, da comunidade [do morro da Providência] são detidos, e o Exército os leva a uma facção [rival de traficantes], e eles são mortos de forma brutal. Isso é uma aberração e é política. Quem levou o projeto Cimento não sei das quantas para lá? Um político [o senador Marcelo Crivella, do PRB, autor do Cimento Social, de reforma de casas; em nota, na quinta-feira, o parlamentar afirmou: "O que fiz foi unicamente apresentar e defender a importância do projeto (...) e garantir os recursos orçamentários necessários"]. O Exército só foi lá porque o presidente do país autorizou. Obviamente não imaginava que fosse aquilo, mas aquele que é candidato a prefeito [Crivella] levou [o Exército] e vai ter que assumir a responsabilidade. Isso marca a podridão em que foi transformada a política. Há pessoas maravilhosas, mas a média lamentavelmente falha. Meu personagem é um desses duendes chafurdando no lamaçal.
FOLHA - O sr. enfrentou resistência do movimento negro em razão de interpretar um político corrupto?
MILTON - Uma pessoa próxima, que se notabiliza por palpites infelizes, me mandou um e-mail: "Será que isso não vai atrapalhar? Será que estão querendo atingir [Barack] Obama?" É um jornalista negro, não vou falar o nome. Algumas outras pessoas escreveram. Ficou a sensação de que seria negativo fazer um político negro corrupto em um país onde o negro, que é metade da população, não é representado no tamanho da sua participação na sociedade. Me questionaram se o personagem não atrapalharia [políticos negros] nas eleições. Não acho, e sou ativista político. Meu lado artístico pede vilões. Vilões que algumas vezes fiz redundaram em grandes discussões. O fato de o cara ser negro não quer dizer que não possa ser desonesto, corrupto, bandido, safado, ladrão. Pode ser tanto quanto o branco. Se meu personagem atrapalhar um candidato negro é porque não há convicção sobre ele. Romildo provoca desejo de que haja políticos negros honestos.
FOLHA - O pesquisador e cineasta Joel Zito Araújo demonstrou que na história da TV a grande maioria dos papéis concedidos a negros era de coadjuvantes, escravos e empregados. Nos últimos anos, houve mais negros em papéis centrais, como a protagonista de "Da Cor do Pecado" (2004/Taís Araújo). Ter um negro como corrupto pode significar que chegamos a um patamar no qual a inserção não é mais um problema?
MILTON - Continuo achando que ainda somos muito poucos em atividade. É só olhar na TV. A participação do negro nas novelas não mudou quantitativamente. Em 68, tive um atrito na Globo, quando Sérgio Cardoso foi pintado de preto para o papel de negro em "A Cabana do Pai Tomás". Em um país em que a metade da população é negra, pintar um branco para fazer o papel de negro é aberração, um desrespeito. Fui contra isso, o que quase me rendeu uma demissão. E não sei se há uma melhoria. Quando se faz uma novela de favelas, por exemplo, aquela figuração lá no fundo ainda não é misturada o suficiente para o meu gosto.
FOLHA - O sr. enfrentou muito preconceito nesses 43 anos de Globo?
MILTON - Preconceito todos sofrem, até branco, dependendo do meio. Em "Baila Comigo" [81], era casado com a personagem da Beatriz Lira. Ela recebeu avisos loucos: "Olha, ele é excelente ator, mas você vai fazer a mulher dele?!". O chamado movimento negro me dizia: "Não vai beijar na boca!". Combinamos: "Tome beijo na boca".
FOLHA - O que o sr. acha do movimento negro no Brasil?
MILTON - Já fui mais ativista. Não renego, mas temos que acrescentar à luta algo a mais, para que a ação seja mais democrática. Não acho que um ministro ou secretário deva ter cargo só para tratar de coisas de negros. Negros devem ser ministros da Fazenda, da Educação. Como pode, nos EUA, onde o negro é 14% da população, haver um negro candidato à Presidência, que espero que seja eleito, com grandes chances, e no Brasil, onde o negro é metade da população, não termos alguém assim? Fui candidato a governador no Rio [94] porque achei que deveria enfrentar. Mas pessoas antes solidárias deram cabo. O que eu queria fazer não incluía desonestidade.
FOLHA - Por suas palavras, não parece favorável às cotas para negros.
MILTON - Não sou radicalmente contra. Quem achar que são boas que faça uso. Mas não acho que as cotas possam resolver questões centenárias. Não posso apenar um branco que tirou dez na prova e dar seu lugar a um negro que tirou cinco.
FOLHA - Encararia outra eleição?
MILTON - Nem que a vaca tussa! Sou da época do MDB e hoje estou no diretório estadual do PMDB do Rio, mas prefiro ser um guerrilheiro em escaramuças. Quando há necessidade, vou lá e dou palpite.
FOLHA - O que acha do PMDB?
MILTON - Houve degradação, a qualidade está muito baixa.
FOLHA - Cogita trocar de partido?
MILTON - Agora não, porque está tudo a mesma porcaria.
FOLHA - O fato de Romildo falar que passou fome é recado a Lula?
MILTON - Nada a ver. A única coisa que me incomoda no Lula foi uma frase que usou, que não estudou e é presidente. Não sabe o mal que causou à nação.
FOLHA - Aprova a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura?
MILTON - Não sei... Cultura, na minha cabeça, é a perna direita de um país. E acho que a Cultura está meio vasqueira, devagar.
FOLHA - "A Favorita" mostra a relação conflituosa do deputado com a imprensa. Como o sr., que fez faculdade de jornalismo, analisa a atual relação entre imprensa e poder?
MILTON - Não há hoje ninguém absolutamente isento. O jornal é feito para um grupo de leitores e quer alcançar seu nível de venda. O seu jornal, por exemplo, tem como cliente a classe média paulista. Pode até fazer matérias para o operariado, mas não é seu público-alvo.
FOLHA - O repórter da novela gritou "corrupto, ladrão" em comício de Romildo. O jornalismo partidário é muito presente hoje no país?
MILTON - Não é função do repórter ir a um comício e chamar o cara de ladrão. Se quer falar, tem que tirar o crachá e agir como cidadão.
FOLHA - Por outro lado, o deputado da novela veta a publicação de reportagens que denunciam suas falcatruas telefonando para a cúpula do jornal. Não é um tema delicado para se tratar em uma emissora que faz parte de um conglomerado de comunicação tão amplo?
MILTON - Concordo em gênero, número e grau. Mas, pai, afasta de mim esse cálice! [risos].
Foto:Luciana Whitaker/Folha Imagem