quarta-feira, junho 14, 2006

Mais um capítulo da Sinha Moça

Novelas da Globo na mira do Ministério Público baiano
Uma audiência pública organizada pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MP) nesta sexta-feira, 9, colocou em debate a representação do negro nas novelas veiculadas na emissora Rede Globo, especificamente Sinhá Moça e Cobras e Lagartos, exibidas respectivamente, as 18 e às 19 horas.
O evento reuniu doutores em história, direito, mídia e membros da comunidade para discutir as denúncias oferecidas pelo MP na semana passada contra o núcleo de direção e produção da Rede Globo, responsáveis pela novela Sinhá Moça. A obra foi considerada "racista e desrespeitosa com a dignidade do povo negro". "A novela Sinhá Moça deturpa a história do negro. Os escravos são retratados como seres passivos e acomodados, que se subjugam à condição imposta pela escravidão.
No entanto, não foi isto que aconteceu na realidade. Na época, os negros lutaram muito pela abolição, se organizaram em quilombos e se rebelaram em insurgências, como a Revolta dos Malês. Mas a novela negligencia esta parte da história", contesta o doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), Vilson Caetano de Souza Júnior.
A coordenadora do curso de pós-graduação em História da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Vlamira Albuquerque, acrescenta que os personagens analisados nas novelas são estereotipados, o que agride a auto-estima da comunidade negra. "Em Cobras e Lagartos, os personagens Ellen (Thaís Araújo) e Foguinho (Lázaro Ramos) são pilantras e de baixo caráter.
Em Sinhá Moça, os negros são fracos e não reagem à escravidão. Estas representações contribuem para que o negro se sinta sempre inferior", comenta. A pesquisadora ainda acrescenta que a novela não tem a obrigação de repetir o conteúdo veiculado na primeira versão, de 1986, e que deve se adequar às novas abordagens do negro na história. "A maneira que o autor conta a história é uma interpretação particular dos fatos narrados, não são fatos absolutos, e as pessoas ficam sem acesso a uma representação fiel do passado". Questionado sobre o direito à liberdade de expressão da obra artística e da não obrigatoriedade de compromisso da ficção com a realidade (uma vez que não se trata de documentário), o promotor de justiça e coordenador do Grupo de Atuação Especial do Combate à Discriminação (GEDIS), Almiro Sena Soares Filho, explica que há dois direitos em conflito no caso: a liberdade de expressão da mídia e a dignidade da pessoa humana do negro. "Nenhum direito é absoluto, mas quando ocorre este tipo de conflito entre dois direitos, temos que apelar para os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
No entendimento jurídico, o direito á dignidade supera a liberdade de expressão, pois se trata de um direito constitucional, não apenas legal", esclarece. Mensagens implícitas - Apesar da legítima liberdade de expressão, a telenovela possui um caráter particular na estrutura da sua narrativa: a transmissão de conteúdos implícitos de forma subjetiva. Como os discursos prevalecem sobre os fatos, a ideologia veiculada se materializa subliminarmente no comportamento das pessoas e o racismo se naturaliza nas práticas humanas. Com base nestas concepções, os debatedores defendem que o caráter subjetivo das telenovelas aliado à alta penetração do veículo televisivo no dia-a-dia das pessoas obriga a obra a ter um "compromisso com princípios fundamentais da sociedade". A doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretora de Jornalismo da Associação Brasileira de Imprensa, Josette Xisto Cunha, aposta na análise do discurso para uma avaliação equilibrada dos impactos da telenovela na sociedade brasileira. "A representação dos negros nestas telenovelas reforça o tratamento racista e hegemônico que é dado a eles na sociedade. As mensagens são subjetivas e implícitas, mas promovem resultados concretos que perpetuam a discriminação racial. Portanto, não interessa a historiografia da novela Sinhá Moça, mas a forma como a "realidade" é construída na obra. A mídia é co-responsável pela manutenção deste discurso hegemônico e esquece do compromisso que tem na construção das identidades sociais. Assim como um médico pode matar uma pessoa numa mesa de cirurgia, a mídia pode "matar" a auto-estima de um indivíduo. Submetidos ao poder da mídia, os negros ficam impossibilitados de mudar a sua imagem social e são condenados ao discurso dominante". O promotor Almiro Sena, autor do pedido de abertura do inquérito civil, acrescenta que o tema da escravidão foi um crime contra a humanidade e que não pode ser tratado como um tema qualquer. "Para se retratar momentos históricos densos, como a escravidão, o holocausto e genocídios, a licença poética tem que ser relativizada. Não se pode falar destes assuntos como se fossem temas quaisquer", defende. Outras Obras - Na opinião do secretário de Direitos Humanos do Rio de Janeiro, coronel Jorge da Silva, outras obras como a novela "Porto dos Milagres" e o livro "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, também contribuem para a reafirmação do racismo. "Em Porto dos Milagres, a maioria dos atores eram brancos e a novela parecia acontecer no Paraná, enquanto a história original, escrita por Jorge Amado, era toda ambientada na Bahia, com personagens negros e mulatos. O autor, na época, justificou como licença poética, então porque não usam esta liberdade de criação para retratar um casal de negros como patrões de imigrantes italianos nas novelas?", questiona. Segundo ele, Gilberto Freyre também contribui com a manutenção do racismo quando justifica em suas obras que os índios não foram escravizados por serem mais fracos para o trabalho do que os negros. "Isto é uma mentira que contam nas escolas para as crianças e deve ser desconstruída. Os negros foram escravizados porque o tráfico era extremamente rentável e até a igreja católica se beneficiava com o comércio ilegal. A história como é contada sustenta a idéia de que o negro possui uma predisposição genética para a escravidão", dispara.
Para o Coordenador do [Instituto Mídia Étnica], Paulo Rogério Nunes, o programa humorístico "Os Trapalhões" também reafirmava o racismo de forma implícita. "Mussum era um ébrio, sem nenhuma perspectiva de vida. E esta é a forma como o negro geralmente é representado na televisão brasileira. Agora, continua o mesmo discurso no programa, mas com o personagem representado pelo Jacaré (o ex-dançarino da banda baiana É o Tchan)". Paulo deverá encaminhar um ofício à Rede Globo na próxima semana onde solicitará a abordagem em telenovelas da história das comunidades negras Axanti, Palmares e Yorubá na constituição da cultura racial. "Não se pode reproduzir modelos tão antigos de narrativa racista. Sinhá Moça não esclarece nada sobre a história dos negros e há materiais historiográficos bem mais interessantes que nunca são aproveitados".
Foram convidados para participar da audiência o Ministro da Cultura, Gilberto Gil, o Ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos, o Diretor-Geral da Rede Globo, Octavio Florisbal, o autor da novela Sinhá Moça, Benedito Ruy Barbosa, e o presidente da Rede Bahia, Antônio Carlos Magalhães Júnior. Nenhum deles compareceu à audiência. Segundo o promotor, a ação civil não pretende tirar a novela do ar, mas colocar em discussão o conteúdo da obra.
Fonte: Carina Rabelo - Jornal A Tarde On-line

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